Edição − Março/2014 - Categoria:
"TAPS (twin-anemia-polycythemia sequence): A importância do diagnóstico ultrassonográfico antenatal"(Revisão da Literatura)
AUTORA
Dra. Débora de Paula Soares
ORIENTADOR
Dr. Ayrton Roberto Pastore1
1. Graduado em Medicina pela Faculdade de Medicina de Sorocaba da PUCSP; Residência em Ginecologia e Obstetrícia pelo Departamento de Tocoginecologia da FMUSP; Título de Especialista em Ginecologia e Obstetrícia pela FEBRASGO/AMB; Membro da Comissão Científica da Sociedade Paulista de Radiologia; Livre-Docente pelo Departamento de Radiologia da FMUSP; Coordenador do Setor de Ultrassonografia do Ambulatório de Ginecologia do Hospital das Clínicas da FMUSP; Autor do livro “Ultrassonografia em Ginecologia e Obstetrícia” 2ª Ed. Editora Revinter-RJ, 2010; Membro da International Society of Ultrasound in Obstetrics and Gynecology.
INSTITUIÇÃO
CETRUS – Centro de Ensino em Tomografia, Ressonância e Ultrassonografia
RESUMO
A TAPS (twin-anemia-polycythemia sequence ou sequência da anemia–policitemia-entre gêmeos) é uma forma de transfusão feto-fetal crônica descrita recentemente. A sua característica é a discrepância dos níveis de hemoglobina entre os fetos, sem apresentar o sinal de oligo-polidrâmnio (TOPS). Pode ocorrer de forma espontânea ou iatrogênica, após o tratamento cirúrgico com laser das gestações monocoriônicas com síndrome da transfusão feto-fetal. A presença de minúsculas anastomoses arterio-venosas permitem o fluxo lento de sangue de um feto para o outro, e podem ser diagnosticadas antes do parto, através da dopplervelocimetria. Se diagnosticada tardiamente, apresenta péssimo prognóstico, com o óbito, de um ou dos dois fetos. A melhor forma de tratamento ainda não está bem clara, e varia da conduta expectante até intervenções intrauterinas. A possibilidade de desfechos ruins da gestação caso o diagnóstico não seja feito de forma precoce, justifica a realização de avaliações periódicas através da dopplervelocimetria nas gestações gemelares monocoriônicas, mesmo nas não complicadas, apesar da sua baixa frequência.
INTRODUÇÃO
O presente artigo trata sobre os fatores etiológicos, as principais características, e o diagnóstico da TAPS, doença denominada Sequência da Anemia – Policitemia entre gêmeos, do inglês twin-anemia-polycythemia sequence.
Em 2007, em Leiden na Holanda, começaram a ser descritos os primeiros casos do diagnóstico antenatal da TAPS, que possibilitou um novo diagnóstico ultrassonográfico pré-natal nas gestações gemelares monocoriônicas. A doença é considerada uma variante da transfusão feto-fetal (STFF), porém sem a disparidade do volume amniótico de cada feto (oligodrâmnio e polidrâmnio), característica tal que, sem a realização do doppler da artéria cerebral média, faz com que o diagnóstico só seja realizado após o acometimento sistêmico grave dos fetos ou até mesmo após o parto.
A TAPS é um doença recente na medicina fetal e pode ser diagnosticada com facilidade durante a gestação, através da dopplervelocimetria obstétrica. Na atualidade, existem poucos relatos na literatura brasileira, e o seu diagnóstico ultrassonográfico muitas vezes passa desapercebido nos exames pré-natais de rotina. O diagnóstico precoce e a sua evolução poderiam ser acompanhados, bem como o tratamento intraútero quando necessário, com a melhora do prognóstico gestacional.
O nosso objetivo foi realizar a revisão da literatura médica científica publicada sobre a TAPS entre 2007 e 2013.
REVISÃO DA LITERATURA
Na literatura já foram descritos três tipos de anastomoses vasculares presentes na placenta, as artério-arteriais (AA), veno-venosas (VV) e as artério-venosas (AV). As duas primeiras tem fluxo bidirecional que permite a estabilidade hemodinâmica nas gestações gemelares monocoriônicas (1). As anastomoses AV, são essenciais para o desenvolvimento da síndrome de transfusão feto-fetal e da sequência da anemia policitemia entre os gêmeos. A sua etiologia está na diferença de pressão que ocorre entre os vasos, com fluxo unidirecional, que a longo prazo resulta em um desequilíbrio hemodinâmico entre os fetos (1).
O achado mais comum à ultrassonografia na transfusão entre fetos monocoriônicos é o oligodrâmnio no feto doador e polidrâmnio no feto receptor (TOPS).
A TAPS, também é considerada uma forma crônica de transfusão feto-fetal. Caracteriza-se por uma discordância entre os níveis de hemoglobina entre o feto doador e receptor, sem as alterações no líquido amniótico (2). O seu diagnóstico costuma ser realizado pelo neonatologista após o nascimento, nos casos de melhor prognóstico. A ultrassonografia identifica as alterações sistêmicas decorrentes da anemia e/ou policitemia severa, nos casos mais graves (3), (4).
A TAPS pode ocorrer espontaneamente em cerca de 3 a 5% das gestações monocoriônicas. O mais frequente é a forma iatrogênica após tratamento incompleto com laser nas gestações complicadas pela STFF clássica (até 12% dos casos) (5), (2). O seu diagnóstico é feito por meio da dopplervelocimetria, que identifica a discordância entre o pico da velocidade sistólica na artéria cerebral média (PVS- ACM) entre os fetos (6). No feto doador, o critério ecográfico utilizado para diagnóstico de anemia fetal é o PVS-ACM acima de 1,5 múltiplos da mediana. No feto receptor com policitemia, os valores aferidos estão abaixo de 1 múltiplo da mediana (6) (5). A transfusão entre os fetos acometidos pela TAPS, muitas vezes não causa alterações no volume de líquido amniótico e não se enquadra nos critérios diagnósticos clássicos da STFF.
Há casos em que o diagnóstico é realizado após o parto, pela discordância nos níveis séricos de hemoglobina de até 8g/dl entre os fetos (3). Alguns autores utilizam valores de Hb <11g/dl no feto anêmico e Hb > 20g/dl no feto polecitêmico (5). A reticulocitose (ratio>1,7) no feto anêmico é também frequente. A análise da placenta após a injeção de corante é outro critério para o seu diagnóstico pós-natal. Ela identifica algumas minúsculas anastomoses arterio-venosas (6) com diâmetro de 0,4mm em média (7).
Uma classificação da severidade da TAPS baseada nos achados ultrassonográficos e na diferença nos níveis séricos de hemoglobina entre os gêmeos tem sido utilizada. O diagnóstico pré-natal, frequentemente é feito no terceiro trimestre da gestação a partir da 30ª semana. Porém, há relatos de casos cujo diagnóstico foi realizado na 24ª semana (8).
De acordo com os valores do PVS da ACM, cinco estágios da doença podem ser definidos (Quadro1). No estágio 1 ocorre apenas alterações na Dopplervelocimetria, sem sinais de comprometimento fetal. Os estágios evoluem a medida que a doença se agrava, e no 5º estágio há a morte de um feto ou de ambos (5).
Antenatal stage | Findings at Doppler ultrasound examination |
Stage 1 | MCA-PSV donor >1.5 MoM and MCA-PSV recipient <1.0 MoM, without other signs of fetal compromise |
Stage 2 | MCA-PSV donor >1.7 MoM and MCA-PSV recipient <0.8 MoM, without other signs of fetal compromise |
Stage 3 | as stage 1 or 2, with cardiac compromise of donor, defined as critically abnormal flow a |
Stage 4 | hydrops of donor |
Stage 5 | intrauterine demise of one or both fetuses preceded by TAPS |
a Critically abnormal Doppler is defined as absent or reversed end-diastolic |
Quadro 1: Slaghekke et al., 2010.
A morbimortalidade perinatal da TAPS ainda não é conhecida, bem como seu melhor manejo (5) (9). O tratamento varia desde conduta expectante, parto, transfusão de sangue através da cordocentese, até feticídio seletivo (nos países onde a conduta é permitida) e coagulação das anastomoses AV por laser (8) (2) (5).
MÉTODO
A metodologia consistiu-se na revisão retrospectiva de publicações científicas. Para acesso aos artigos que compuseram a amostra do presente estudo, inicialmente utilizou-se o PubMed, recurso de busca do National Institutes of Health, utilizando os descritores: TAPS, twins e monochorionic. Dos 24 artigos encontrados, foram incluídos os de maior importância científica (casuística, metodologia, bibliografia utilizada). Também através do site da Biblioteca Virtual de saúde (BVS), que interconecta diversas bases de dados referênciais (SciELO, Medline e Lilacs), foram selecionados artigos que abordavam as palavras-chave: monochorionic e policitemia e anemia, e no total de 11 artigos, foram aplicados os mesmos critérios.
RESULTADOS
Foram revisados 13 artigos, publicados no período de 2000 a 2013. Entre eles há relatos de casos, revisões de literatura, estudo de caso-controle, e formulação de protocolo de avaliação placentária.
DISCUSSÃO
Cerca de 3% de todas as gestações são múltiplas. As monocoriônicas têm incidência de 1:250 (4) e estão associadas à maior morbimortalidade perinatal (9), quando comparadas às gestações únicas ou dicoriônicas. Nas gestações monocoriônicas os fetos dividem a mesma placenta, que possui diversas anastomoses vasculares que permitem a circulação de sangue entre um feto e outro. Em alguns casos, essas anastomoses apresentam alterações no número, diâmetro e estrutura vascular. Elas alteram o fluxo de sangue que circula entre os fetos, e causam graves doenças como: a síndrome da transfusão feto-feto com oligo-polidramnio (TOPS). e a sequência da anemia – policitemia entre os gêmeos (“TAPS” – twin-anemia-polycythemia sequence).
A literatura mostra que as anastomoses arteriovenosas quando em grande número, principalmente estreitas, com espessura máxima de 0,4mm, parecem ser uma condição necessária para o desenvolvimento das síndromes de transfusão entre os fetos, especialmente a TAPS. Em contrapartida, a presença de anastomoses arterio-arteriais seria um fator protetor, diminuindo a gravidade da transfusão. Se presentes em maior quantidade e/ou com espessura ≥ 1mm, são capazes de contrabalancear o fluxo sanguíneo entre os fetos (6). A relação entre disfunção hormonal e TAPS, como ocorre na STFF com oligo-polidramnia (TOPS), ainda não está clara.
Os autores concordam que pelo fato das anastomoses AV serem muito estreitas, a transfusão sanguínea entre os fetos ocorre lentamente. Isso possibilita uma ação compensatória mais eficaz, o que explicaria a ausência de alterações no volume de líquido amniótico, mas com gradativa diferença entre a contagem de hemoglobina entre eles. Outra hipótese aventada é que na TAPS a transfusão de células vermelhas predomina. Na TOPS há maior conteúdo de componentes plasmáticos na transfusão, que leva à discrepância no volume de líquido amniótico entre os gêmeos. Assim, a patogênese da TAPS ainda não está bem estabelecida, sendo necessários estudos com maior casuística, para o seu entendimento.
A TAPS pode ser espontânea ou iatrogênica. A primeira ocorre de forma natural sem intervenção prévia, menos frequente que a segunda (também chamada de pós-laser). Essa diferença tende a se elevar, porque está aumentando a acessibilidade à terapia com laser nas gestações monocoriônicas complicadas pela TOPS. A TAPS iatrogênica se deve à difícil visualização das minúsculas anastomoses AV à fetoscopia, com dificuldade para a coagulação com o laser. A permanência de fluxo nestes vasos ocasiona a TAPS a longo prazo.
O diagnóstico antenatal da TAPS está bem estabelecido. A dopplervelocimetria dos fetos, mais precisamente o PVS-ACM, é usado como critério diagnóstico. No feto doador, a medida do PVS da ACM é superior a 1,5 múltiplos da mediana (MoM), caracterizando anemia fetal. No feto receptor, polecitêmico, a medida é menor que 1 MoM. Não deve haver alteração no volume do líquido amnniótico. Deve-se descartar qualquer fator que possa causar anemia como aloimunização, infecções congênitas ou hemorragia materno-fetal. Importante, antes de qualquer intervenção cirúrgica confirmar a anemia através de cordocentese.
Há relatos de casos com outros sinais ecográficos notados precocemente antes das alterações no fluxo da artéria cerebral média (10) (11). Porém, ainda são necessários estudos com maior casuística para se tornarem critérios diagnósticos. Por exemplo, o “Starry Sky liver pattern”, quando o fígado aparenta diminuição difusa da ecogenicidade de seu parênquima (céu) o que acentua a diferença de ecogenicidade entre o parênquima e as veias portais, deixando-as mais evidentes (estrelas) (10). Há outro caso, em que se notou diferença de ecogenicidade entre as partes da placenta responsáveis pela nutrição de cada feto. A parte da placenta respectiva ao feto doador, anêmico, aparenta ser mais ecogênica com sinais de hidropsia (11). Essa alteração foi confirmada por exame histopatológico após o parto e por outros estudos, e pode ser um marcador precoce de anemia fetal.
Nos estágios mais avançados da doença, quando o diagnóstico foi tardio ou após o parto, ocorre comprometimento fetal. Lesões cerebrais, comprometimento cardíaco, hidropsia, são alterações esperadas nos casos de anemia e/ou policitemia fetal, incluindo óbito de um feto ou de ambos (3).
CONCLUSÕES
A TAPS é uma forma de transfusão feto-fetal, com patogenia ainda não bem esclarecida, que ocasiona grande discrepância entre os índices de hemoglobina dos fetos (anemia – policitemia). A sua incidência é relevante, a ponto de se recomendar a avaliação do PVS-ACM nos exames de rotina do pré-natal das gestações gemelares monocoriônicas não complicadas. Esse rastreamento permitiria a triagem das gestações candidatas a intervenções intrauterinas, a fim de melhorar o prognóstico e diminuir a morbimortalidade neonatal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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