Edição − Abril/2016 - Categoria: Ginecologia e Obstetrícia
Gestação múltipla com coexistência de mola hidatiforme completa e feto normal: relato de caso
Aluna do Cetrus
Dra. Tatiana Teixeira de Souza Couto
Graduada em medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais em Belo Horizonte, atualmente é plantonista na maternidade do Hospital das Clínicas – UFMG.
Instituição
Cetrus – Centro de Ensino em Tomografia, Ressonância e Ultrassonografia.
Resumo
O objetivo desse relato de caso é apresentar os aspectos clínicos, achados ecográficos, conduta e evolução de gestação múltipla com coexistência de mola hidatiforme completa e feto normal.
Abstract
The purpose of this case report is to present the clinical, sonographic findings, management and evolution of multiple pregnancy with complete hydatidiform mole coexistence and normal fetus.
Introdução
A gestação múltipla com coexistência de mola hidatiforme completa e feto normal (MHCFN) constitui uma entidade bastante rara, ocorrendo 1: 22.000-100.000 gestações. Embora o feto seja viável, essas gestações frequentemente são complicadas por intercorrências graves, como hiperemese gestacional, hemorragia, tireotoxicose, pré-eclâmpsia, abortamento, óbito fetal, embolia e neoplasia trofoblástica gestacional.
Relato de caso
CMR, leucoderma, 26 anos, primigesta, gestação espontânea, encaminhada ao serviço de Ultrassonografia para a realização de biópsia de vilo corial, com 22/23 semanas de gestação. Inicialmente, foi diagnosticada como portadora de mola hidatiforme parcial, devido ao achado ecográfico de placenta com múltiplas áreas anecóicas, sugerindo vesículas, associado à presença de feto vivo e níveis séricos de b-HCG bastante elevados. O feto não apresentava restrição de crescimento ou malformações identificáveis. A placenta apresentava áreas normais à ultrassonografia (US), e outras adjacentes com múltiplas vesículas e fluxo aumentado ao Doppler. Foi realizada biópsia de vilo corial em ambas as regiões, que mostrou cariótipo 46 XX na área de placenta normal (feto normal, feminino) e 46 XX na área de placenta alterada (mola hidatiforme completa).
A paciente procurou o Serviço de Pronto-Atendimento com 27 semanas de gestação, por apresentar sangramento vaginal importante e elevação dos níveis pressóricos, sendo submetida a cesariana. O ato cirúrgico ocorreu sem complicações, e o RN, feminino, com peso de 1.080 g, foi encaminhado à Unidade de Terapia Intensiva Neonatal devido à prematuridade extrema.
O laudo anatomopatológico evidenciou “placenta com padrão típico para o terceiro trimestre de gestação, associada a mola hidatiforme grau I, e cordão umbilical normal”.
Figura 1
Figura 1. US com 9/10 semanas de gestação. Pode-se obervar pequenas áreas.
Figura 2
Figura 2. US com 11/12 semanas de anecóicas inespecíficas no trofoblasto.
Figura 3
Figura 3. US com 19/20 semanas.
Figura 4
Figura 4. US com 26/27 semanas de gestação.
Observar a nítida transição entre o componente molar e a placenta normal, com o avançar da gestação.
Figura 5A
Figura 5A. Componente molar de aspecto multivesicular clássico.
Figura 5B
Figura 5B. Placenta de aspecto normal.
Figura 6
Figura 6. Foto do RN. Feto normal, feminino, com 27 semanas.
A paciente apresentou sangramento vaginal acentuado poucos dias após o parto, e foi submetida a curetagem uterina. O laudo anatomopatológico do material obtido evidenciou somente endométrio hipotrófico. Os níveis séricos de β-HCG apresentaram queda significativa a partir do primeiro dia após a cesariana, e não houve necessidade de tratamento quimioterápico. A dosagem de β-HCG alcançou níveis abaixo de 5 mUI/mL 92 dias após o parto.
Discussão
Gestação múltipla com coexistência de mola hidatiforme completa e feto normal, constitue entidade bastante rara. O diagnóstico era feito de forma retrospectiva após o parto, até recentemente. Na prática clínica, a principal dificuldade é diferenciar essas situações de quadros de mola parcial, em que geralmente há feto inviável. Na coexistência de mola completa com feto normal, o feto tem cariótipo normal e não apresenta malformações. A placenta apresenta dois componentes: placenta normal com cariótipo idêntico ao do feto, e componente molar, geralmente com cariótipo diploide de origem paterna. Já na mola parcial, o feto geralmente apresenta cariótipo triploide, associado a múltiplas malformações estruturais, oligodrâmnio e restrição de crescimento intrauterino, situação que com frequência culmina com o óbito fetal. O diagnóstico diferencial definitivo pode ser obtido através de biópsia de vilo corial para estudo cromossômico, como foi feito neste caso em questão.
O aspecto clássico do componente molar à US com múltiplas áreas anecoicas, adjacente a uma placenta de aspecto ecográfico normal, associado a feto sem alterações morfológicas, sugere fortemente o diagnóstico de gestação múltipla com coexistência de mola completa e feto normal. O diagnóstico diferencial com displasia mesenquimal pode ser difícil. A displasia mesenquimal apresenta placentomegalia com áreas císticas, associada a restrição de crescimento fetal e até óbito fetal, porém os níveis de β-HCG nessas pacientes usualmente não estão elevados.
Nos casos de MHCFN, exceto em casos de anormalidades fetais esporádicas, o feto é saudável, sendo possível a condução da gestação desde que não haja intercorrências maternas graves. Frequentemente há complicações graves, como óbito fetal, pré-eclâmpsia, tireotoxicose, hemorragia e neoplasia trofoblástica gestacional. A conduta da gestação dependerá da gravidade do quadro materno, e da idade gestacional em que a intercorrência se apresenta. A pré-eclâmpsia que acomete aproximadamente 6% dos casos de MHCFN, é um forte indicador de mau prognóstico, e sua instalação precoce constitui indicação de interrupção da gestação.
Além das complicações já citadas, as pacientes com gestação molar apresentam frequentemente sinais e sintomas decorrentes de níveis elevados de β-HCG, como hiperemese gestacional, tireotoxicose e cistos tecaluteínicos, que geralmente regridem espontaneamente após o parto.
Os níveis séricos de β-HCG são bastante úteis no diagnóstico e acompanhamento de pacientes com MHCFN, porém não há estudos correlacionando a sua dosagem com prognóstico e resultados dessas gestações.
Os primeiros estudos que abordaram a evolução para neoplasia trofoblástica gestacional após casos de MHCFN descreviam que essa complicação ocorria em 50-63% dos casos, incidência que seria maior do que a observada em quadros de gestação molar simples. Estudos maiores e mais recentes, entretanto, demonstram não haver risco aumentado de desenvolvimento de neoplasia trofoblástica gestacional entre as pacientes que optam por condução da gestação, quando comparado àquelas que optaram por interrupção eletiva precoce da gestação.
Sebire e cols. avaliaram 77 casos de MHCFN com o objetivo de analisar os riscos maternos e fetais. Enquanto 24 pacientes optaram pela interrupção precoce da gestação, 53 optaram pela condução da mesma. Dessas 53 gestações, 23 evoluíram para abortamento espontâneo antes de 24 semanas e duas tiveram que ser interrompidas devido a pré-eclâmpsia grave. Entre as 28 gestações que prosseguiram, 20 resultaram em feto viável e nascido vivo, a maioria delas após 32 semanas de gestação. A incidência de neoplasia trofoblástica gestacional, com indicação de tratamento quimioterápico foi de 16% entre as pacientes que tiveram interrupção precoce da gestação e de 21% entre aquelas em que a gestação foi conduzida, sem diferença estatisticamente significativa entre os grupos. Vale ressaltar que a incidência de neoplasia trofoblástica gestacional após uma gestação molar completa única é de 16%.
Técnicas de reprodução assistida, cada vez mais empregadas em nosso meio, parecem aumentar a incidência de gestação múltipla com coexistência de mola completa e feto normal.
Conclusão
A condução de uma gestação múltipla com coexistência de mola hidatiforme completa e feto normal, embora potencialmente complicada por múltiplas intercorrências, pode resultar em feto viável em até 40% dos casos. Assim, desde que não haja intercorrências maternas graves, a gestação pode ser conduzida até a viabilidade fetal, sem aumento do risco de desenvolvimento de neoplasia trofoblástica gestacional, quando comparado a situações de interrupção precoce.
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